Desgracida
O professor de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tradutor Caetano W. Galindo faz uma resenha, em formato de carta, sobre Desgracida, o recém-lançado livro de Dalton Trevisan, sucessor de Violetas e Pavões (2009).
Caro senhor Dalton Trevisan,
Esse teu Desgracida é uma preciosidade.
A primeira leitura, afogada, ansiosa, deu, mera, meia hora. Texto concentrado, esmirradinho e forte toda-vida, aquelas epifanias breves. Uma por página. Cada uma um coração de alcachofra.
Mas foi primeira. Já voltei, lendo lento, e ainda hei.
Que, ah!, merece...
(Afinal, mesmo você soltando um por ano, dá pra sentir falta.)
É um tipo de conforto e um grande deslumbre rever a cada novo o mesmo povo, a mesma voz, mesma “pegada”, mas sempre relida, apontada pra uns cantos novos, sussurando outros temas, bundas outras, mais velhinhos sujos, pivetinhos petulantes. É ver um grande bluesman, tirando mais música da estrutura estreita, fazendo o mesmo, incontornável, mas fazendo sempre como pela primeira.
Com a diferença, mais que fundamental, meu caro, que essa forma aqui, essa escala, foi você que foi inventando, e dando a cada livro. (Essa sensação de nem mais saber direito o que é reaproveitamento de texto anterior, de tema “familiar”, ou é novo e simplesmente cabe perfeito na mais velha, mesma música.)
E os “olhos putais” daquela “Marishka”!, do nome ao fim uma musa definitiva?
Pois além de tudo, forma, mundo, tem a língua mesma.
Aquele português tão curitibano e ao mesmo tempo tão de lugar nenhum. O esquisitinho conhecido, o taradinho família, o pervertidinho de cada um. A depravação diminutiva, desgracida. Aquele “pensar em inglês” que você mesmo aponta, mas que na tua mão é que gera (como na do teu Pessoa) esse escrever de fianco que dá uma luz mais bonita no quadro.
E desentranhar lá do meio do Machadinho, entre aspas e tudo mais, um trecho completa e trevisaniamente pervertido e doido!
Seu Joaquim vira Dalton mais uma vez. Merece.
*
E está dito. Ou não?
E já fazia desse Desgracida um belíssimo livro entre os teus todos.
Mas a coisa é que tem mais, né?
De onde foi que te veio o estalo de publicar aquelas “cartas”?
Aquelas maltraçadas, completamente inesperadas, são das coisas mais supimpas que já li.
“Falemos mal do Grande Sertão. Rompe você ou começo eu?”
O elogio a Chekhov: definitivo. “O som de mil vozes na única mão que escreve.”
A revelação, pra mim, do aloprado do Léautaud. A presença do nosso Joyce (Eu posso ter traduzido o Ulysses inteiro, mas você traduziu primeiro no Brasil e, mais que isso, se apropriou dele direitinhamente.).
O simples fato, variedade das variedades, de ver um escritor brasileiro aberto pro mundo.
O mero privilégio (palavra cafona, fazer o quê?) de te ler a Pedro Nava, Otto Lara Resende, Rubem Braga. Abrir o Journal Littéraire do Vampiro e vê-lo gente. Afinal, “o que interessa, na vida e na literatura, é o coração deflorado do homem.”
Você se arrombando um tanto. Mais recente e refinada perversão. Eia, sus!
*
Enfim.
Me pediram uma resenha. Não deu não. (Dizer que o livro é bom, como é, etc, acho até que fiz. E convenhamos, livro teu não precisa de resenha minha pra qualquer coisa...)
Sempre quis te escrever, e, inspirado pelas tuas “cartas”, copiei tua forma.
Sempre quis te plagiar.
Dia desses, com um amigo, traduzi uns fragmentos teus pro inglês. Você leu, me disseram. Ficamos em verdadeiro êxtase virando velhinhos bíblicos sujos na língua de Joyce. Viramos you por uns dias. Sempre quis te plagiar.
Fica aqui com esse mero “discurso de arara bêbada”.
Sempre quis te escrever. Sempre quis te agradecer. Dia desses, quando passar por você na rua te mando um piparote.
Finge que não vê.
“Que Deus [te] conceda muitos anos para novos e altíssimos brados líricos às margens [flácidas] do [Belém].”
Serviço:
Desgracida. Dalton Trevisan. Record, 240 págs. R$ 37,90.
Caro senhor Dalton Trevisan,
Esse teu Desgracida é uma preciosidade.
A primeira leitura, afogada, ansiosa, deu, mera, meia hora. Texto concentrado, esmirradinho e forte toda-vida, aquelas epifanias breves. Uma por página. Cada uma um coração de alcachofra.
Mas foi primeira. Já voltei, lendo lento, e ainda hei.
Que, ah!, merece...
(Afinal, mesmo você soltando um por ano, dá pra sentir falta.)
É um tipo de conforto e um grande deslumbre rever a cada novo o mesmo povo, a mesma voz, mesma “pegada”, mas sempre relida, apontada pra uns cantos novos, sussurando outros temas, bundas outras, mais velhinhos sujos, pivetinhos petulantes. É ver um grande bluesman, tirando mais música da estrutura estreita, fazendo o mesmo, incontornável, mas fazendo sempre como pela primeira.
Com a diferença, mais que fundamental, meu caro, que essa forma aqui, essa escala, foi você que foi inventando, e dando a cada livro. (Essa sensação de nem mais saber direito o que é reaproveitamento de texto anterior, de tema “familiar”, ou é novo e simplesmente cabe perfeito na mais velha, mesma música.)
E os “olhos putais” daquela “Marishka”!, do nome ao fim uma musa definitiva?
Pois além de tudo, forma, mundo, tem a língua mesma.
Aquele português tão curitibano e ao mesmo tempo tão de lugar nenhum. O esquisitinho conhecido, o taradinho família, o pervertidinho de cada um. A depravação diminutiva, desgracida. Aquele “pensar em inglês” que você mesmo aponta, mas que na tua mão é que gera (como na do teu Pessoa) esse escrever de fianco que dá uma luz mais bonita no quadro.
E desentranhar lá do meio do Machadinho, entre aspas e tudo mais, um trecho completa e trevisaniamente pervertido e doido!
Seu Joaquim vira Dalton mais uma vez. Merece.
*
E está dito. Ou não?
E já fazia desse Desgracida um belíssimo livro entre os teus todos.
Mas a coisa é que tem mais, né?
De onde foi que te veio o estalo de publicar aquelas “cartas”?
Aquelas maltraçadas, completamente inesperadas, são das coisas mais supimpas que já li.
“Falemos mal do Grande Sertão. Rompe você ou começo eu?”
O elogio a Chekhov: definitivo. “O som de mil vozes na única mão que escreve.”
A revelação, pra mim, do aloprado do Léautaud. A presença do nosso Joyce (Eu posso ter traduzido o Ulysses inteiro, mas você traduziu primeiro no Brasil e, mais que isso, se apropriou dele direitinhamente.).
O simples fato, variedade das variedades, de ver um escritor brasileiro aberto pro mundo.
O mero privilégio (palavra cafona, fazer o quê?) de te ler a Pedro Nava, Otto Lara Resende, Rubem Braga. Abrir o Journal Littéraire do Vampiro e vê-lo gente. Afinal, “o que interessa, na vida e na literatura, é o coração deflorado do homem.”
Você se arrombando um tanto. Mais recente e refinada perversão. Eia, sus!
*
Enfim.
Me pediram uma resenha. Não deu não. (Dizer que o livro é bom, como é, etc, acho até que fiz. E convenhamos, livro teu não precisa de resenha minha pra qualquer coisa...)
Sempre quis te escrever, e, inspirado pelas tuas “cartas”, copiei tua forma.
Sempre quis te plagiar.
Dia desses, com um amigo, traduzi uns fragmentos teus pro inglês. Você leu, me disseram. Ficamos em verdadeiro êxtase virando velhinhos bíblicos sujos na língua de Joyce. Viramos you por uns dias. Sempre quis te plagiar.
Fica aqui com esse mero “discurso de arara bêbada”.
Sempre quis te escrever. Sempre quis te agradecer. Dia desses, quando passar por você na rua te mando um piparote.
Finge que não vê.
“Que Deus [te] conceda muitos anos para novos e altíssimos brados líricos às margens [flácidas] do [Belém].”
Serviço:
Desgracida. Dalton Trevisan. Record, 240 págs. R$ 37,90.
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